sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A Suprema contradição - A diferença que nos iguala


 
Talvez o mais impressionante em toda a concepção espiritual é que ela só produza um único termo que lhe é singular.
Só uma palavra pertence exclusivamente ao campo da espiritua­lidade, e a grande maioria das pessoas tem dificuldade em compreendê-la, apesar de utilizá-la com frequência.
Trata-se da palavra-conceito: sagrado (Kadosh).
No texto bíblico, o Criador se dá ao trabalho de identificar essa palavra com a tarefa maior da espiritualidade: “Sejam sa­grados, porque eu, seu Criador, sou Sagrado.”
O que seria “ser sagrado”?
 
A raiz da palavra “kadosh” em hebraico arcaico significa “colocar à parte” ou “separar”.
A própria qualidade da Criação, como descrita no texto bí­blico, é a de separação. Segundo este, o poder transformador e criador, está no ato de separar e de diferenciar. Separam-se céus da terra, luz das trevas, mares dos continentes, animais uns dos outros e o ser humano dos animais.
A diferença não só cria, como parece preservar a própria vida, uma vez que sabemos hoje ser a biodiversidade essencial para o equilíbrio e a conser­vação do meio ambiente. E não parece se tratar apenas de diferenças coletivas ou de espécies.
A própria diferença entre os indivíduos é marca de saúde, como desvenda hoje a genética.
A reprodução de seres iguais empobrece a tal ponto a vida, que a coloca em risco.
A diversidade entre os seres vivos produz a cada procriação um ato de criação de um diferente.
A possibilidade hoje de criar-se geneticamente seres iguais uns aos outros nos coloca diante da criação de seres sem espiri­to. Isso porque a qualidade maior desta faculdade invisível é a própria diferença, ou a possibilidade de ser sagrado.
Ter um espírito é conter um pedaço de um infinito quebra-cabeças, no qual a condição de ser parte do todo é conter uma diferença que se encaixa em todas as outras diferenças.
A característica maior dessa diferença é que ela agrega, em vez de desagregar.
É ela que nos faz pertencer ao conjunto.
Pro­duz-se novamente uma santa contradição pela qual para fazer parte temos de ser diferentes. Ou melhor, o que nos une não é a igualdade, mas justamente a diferença.
É nela que está o Cria­dor em nós; é ela a diferença que é a semelhança entre todos nós e também entre nós e o Criador.
Essa diferença seria em si o elemento transcendente em cada um de nós.
A marca de nos­sa singularidade seria em si o espírito soprado em cada um de nós, como se fôssemos, individualmente, todos, como Adão.
Em vez de insuflados com um vento-alma, seríamos insuflados com a diferença.
Estaria assim plantado em nós o sagrado.
Somos colocados à parte, feitos diferentes, para podermos existir e nos identificar com tudo o que é solitário em sua diferença. Nossa melancolia por não encontrar um par só se dissolve no encontro com um outro verdadeiramente diferente que é, portanto, como nós.
A espiritualidade seria, dessa forma, o constante mimetismo desta condição, com a função de aplacar nosso desconforto por nossa sensação de separação e solidão. Transcender seria realizar rituais ou viver momentos que nos relembrassem ou colocassem em contato com esse sentimento de proximidade, mas sem­pre pela diferença.
A igualdade nos afasta, nos desumaniza, ou melhor, nos extirpa o espírito.
Sagrar ou fazer sagrado significa tornar distinto.
Separar um dia especial dos outros dias, como faz o Criador com o sábado, é ensinar ao ser humano o segredo de não ficar sozinho neste universo.
Diferencie e você vai encontrar uma santa paz, um encontro com uma essência que é a sua.
Esse artifício para estabelecer encontro é a ideia básica por detrás do antigo Templo, em Jerusalém, e que é, provavelmen­te, a matriz de todos os templos que já existiram, que hoje exis­tem e que existirão no futuro.
Como em uma cena de ficção científica, as criaturas descobriram uma forma de conexão com seu Criador.
Simples de se engendrar, mas difícil de se compre­ender.
O Templo de Jerusalém criou conceitos de diferença, de sagrado.
Havia um país diferente dos outros, nele uma cidade diferente das outras, e nela um monte diferente dos outros. Nesse monte, havia um lugar, um templo, onde dentro dele havia um lugar que era diferente dos outros lugares, e que se chamava o “sagrado dos sagrados”.
Tomavam conta desse templo sacerdo­tes que eram pessoas de uma tribo que era diferenciada das ou­tras tribos, e entre essa tribo pessoas específicas de uma família que era diferente de outras famílias dessa tribo. E nele se cele­bravam dias que eram diferentes de outros dias.
O espaço dife­rente, no tempo diferente, no ser humano diferente, é a antena parabólica que viabiliza um contato com o universo profundo e difuso.
Esta é a dificuldade maior das tradições espirituais.
Por um lado, expressar eticamente que os seres humanos são iguais e, ao mesmo tempo, realçar sua diferença, para que possam ser verdadeiramente iguais. Razão pela qual as religiões ora se perdem no conceito de que são diferentes e matam; ora se perdem na ideia de que são iguais e perdem a potência espiritual.
 
Há uma história sobre um menino que costumava se escon­der em um bosque todos os dias, depois das aulas. Certa vez, seu pai lhe perguntou o que ele fazia escondido no bosque to­dos os dias. “Eu... eu converso com Deus”, disse o menino. “Mas, meu filho”, reagiu o pai, “Por acaso você não sabe que Deus está em todos os lugares? Você não precisa ir até o bosque para falar com Deus. Ele é o mesmo, se você conversar com ele aqui em casa ou no bosque!” “É óbvio que Deus é o mesmo, meu pai”, respondeu o menino serenamente, “mas eu não sou o mesmo!”
 
Buscamos a diferença em tradições e templos, não porque Deus é diferente, mas porque somos diferentes. E só nessa dife­rença é que o espírito momentaneamente se torna real para nós.
A partir desses instantes passageiros, nos tornamos transcen­dentes e nos irmanamos em diferença com tudo o que é dife­rente.
A sutileza entre sagrar e segregar é a sintonia fina que distingue a espiritualidade inteligente da ignorância espiritual.
A periculosidade das manifestações espirituais é sempre esta.
Como não permitir que o ato deliberado de “colocar à parte” ou “separar” em rituais produza segregação, em vez de sagrado.
A segregação não é uma diferença que produz comunhão.
Ao contrário é a celebração do ego, e não do espírito.
Talvez pudéssemos dizer que o espírito é o que é diferente em nós e que nos iguala.
O ego, por sua vez, é aquilo que é igual em todos nós, e que nos diferencia.
A verdade é que a espiritualidade fala de coisas que não se manifestam, mas que estão por trás de toda manifestação.
A inteligência está não só em reconhecer esta sutileza, mas em modificar as matrizes de entendimento e funcionamento de nossas vidas. Diz respeito a permitir-nos delegar maior poder a nossos sensos, para que nos conduzam não necessariamente ao sucesso ou ao triunfo, mas ao bem-estar.
A paz está em sermos tão profundamente diferentes aquietando nosso fogo inter­no, por honrar nossos potenciais que são distintos e, ao mes­mo tempo, sermos tão profundamente iguais aquietando nossa consciência.
Essa integração é santa.
É santa porque nos coloca à parte, se não no universo absoluto, então, no universo que conhece­mos.
O grande objetivo de toda a inteligência, como já dissemos anteriormente, é o encontro. Não temos qualquer outro uso para a inteligência além do de reencontrar o caminho que nos leva de volta ao “jardim” do qual nos originamos.
Lá atrás, quando, fazendo uso da árvore da sabedoria, saí­mos em um derradeiro passeio, descobrimos o exílio.
Nosso único instrumento de sobrevivência se tornou essa sabedoria pela qual nos perdemos de casa. Mas isto é um engano. Nossos instrumentos são dois: a sabedoria com a qual partimos e o profundo desejo de retorno e reencontro.
Sem o último, o pri­meiro nos leva mais longe.
Um longe que parece conquista, mas que na realidade nos faz mais perdidos.
Como na história que citamos anteriormente do homem perdido na floresta.
Quando ele finalmente encontra a luz de uma lamparina, descobre que é a lamparina de um cego que, como ele, estava perdido.
Frustrado, ele acha que ali não existe nenhum ganho real, nada que possa lhe dar mais esperança nes­se encontro. Triste engano. O cego não precisa ver a saída, para o cego, a sensação de floresta e de estar perdido em uma imen­sidão não existe.
A luz de sua lanterna, totalmente desnecessária para ele, e fundamental para que o outro o veja. A função dessa luz é atrair aqueles que têm dificuldade em não ver e ensinar-lhes uma paz que sua visão não lhes permite.
Seu “enxergar” lhes traz o deses­pero da imensidão e do desconhecimento da saída. Juntos, eles têm mais recursos, ou talvez todos os recursos.
Aquele que não enxerga produz luzes para quem enxerga, para que conheçam a paz da cegueira.
No uso do enxergar para promover encontros com o que não enxerga está o nosso grande recurso.
Porque o galo não vê, mas sabe distinguir.
Porque o escuro é a angústia e a redenção.
E a proposta do cego é boa.
Acenda lamparinas para que os outros possam nos encontrar, mas não faça uso delas para en­contrar a saída. A saída só se apresenta aos olhos que se acostu­mam com o escuro. Porque aqueles que estão acostumados com a penumbra não têm problemas em discernir as formas que existem no escuro.
E a floresta se faz casa; e o exílio termina no encontro dos exilados.
E quem com lamparina continua buscando a saída, nada disso vê.

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