terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Senso de Oferenda - Medo, desconfiança e confusão no altar


 
Abordamos a noção de que quanto mais “servimos” ou “amamos”, ou, na medida em que menos somos “servi­dos” ou menos dependemos de “ser amados”, maior a inteligência espiritual.
Quanto maior nossa independência para po­dermos apreciar a vida sem expectativas de provas de amor dos outros, ou sem colecionarmos dossiês sobre como os outros são injustos ou como é neles que se encontram as origens de nossas mazelas, maior a inteligência.
 
O percurso para desenvolver essa inteligência depende da ca­pacidade de fazer oferendas.
Mesmo parecendo arcaico e ritua­lístico, esse é um conceito fundamental do mundo espiritual.
Ofertar não quer dizer fazer um “trabalho” com subornos ao mundo lá de cima, mas significa saber sacrificar certos aspectos de nosso ser que nos impedem de crescer e nos transformar.
Como certos animais que de tempos em tempos mudam de pele, ou como a borboleta que abandona pesos de seu corpo passado para poder voar, o ser humano também faz reciclagens desse tipo.
 
As “couraças” abandonadas que nos permitem vôos espiri­tuais dizem respeito às três outras dimensões que havíamos relacionado: física, emocional e intelectual.
Trazer oferendas desses “pesos” e queimá-las no altar da vida é um ato de iniciação a um novo patamar de inteligência espiritual.
Vamos dar nomes a esses pesos ou obstáculos: na dimensão física, são representados pelos medos; na dimensão emocional, pelas desconfianças; e, na dimensão intelectual, pelas confusões.
Vejamos cada um deles em separado.
 
O mundo físico nos ensina a ter medo.
O medo é um ins­trumento de sobrevivência e que ajuda a regular as decisões vitais de enfrentamento ou fuga.
No entanto, com o passar do tempo e das experiências de vida, o medo se torna residual e acaba representando um bloqueio no mundo espiritual.
Dizia o Rav de Ger: “O medo só deveria ser um sentimento de reverência a Deus. Nada mais deveria ser temido. Quando per­cebemos o sentimento do medo, deveríamos saber que ele está sendo desviado da única fonte merecedora de temor. Todo o medo representa uma forma de idolatria, pois temer é reveren­ciar o que é temido; é ofertar ao que é temido.”
Não percebemos que nossos temores são oferenda a nossos deuses, e “deus” com letra minúscula representa ignorância es­piritual.
O significado desse deus é aprisionamento a um con­dicionamento e a ordens internas que nos dizem o que se deve fazer e o que não se deve fazer.
Deus (com letra maiúscula) representa também “deveres” e “proibições”, mas que não são produzidos por medo comum.
O temor a Deus é uma reverên­cia e uma conexão tão profunda com a vida, que por si só, espontaneamente, pressupõe deveres e interdições.
No entan­to, este é um processo no qual o ser humano está presente e envolvido; nasce da luta “com esse Deus”. Com os deuses em minúscula, seja o deus do vulcão, ou o deus que faz passar nas provas, ou o “meu deus”, todos expressam medos comuns que ofertamos como idólatras (leia-se: espiritualmente ignorantes).
Queremos apaziguar e queremos favores desses deuses para con­ter o medo.
E na mesma medida em que os deuses são contro­láveis, eles nos controlam.
A inteligência espiritual depende de reverências, mas dis­tingui-las dos medos é tarefa árdua. Os medos não permitem reverências e as substituem fazendo com que “sensos” e percep­ções se transformem em superstição e crendice.
Devemos perceber que a fonte dos medos é o corpo, o mundo físico.
Medo de cair, medo de machucar, medo de ver o que não queremos, medo de escutar o que não queremos, medo de ban­car e de arcar com custos. Todas as experiências de vida que foram desagradáveis e contiveram sofrimento físico, ou a incer­teza que muitas vezes possibilita este sofrimento, se transfor­mam em medo.
Esse medo, por sua vez, se transformou em couraça e peso.
Queimá-lo no altar, substituindo-o por reve­rência, é um ato mais do que simbólico.
Ë desatar-se de amar­ras que não permitem vôos e transformação.
 
Toda oferenda é feita pela entrega de algo que se quer trans­formar.
O fogo desse sacrifício é um olhar corajoso e verdadeiro à realidade e que transforma medo em reverência. E aquilo que era material e sem uso algum ao mundo do espírito se transfor­ma em algo aceitável e de utilidade.
A oferenda, mais do que uma doação, é a capacidade de poder oferecer algo útil à dimensão do espírito.
Como um presente que não sabemos dar, pois não conseguimos compreender quais seriam as necessida­des de quem é presenteado, a oferenda representa perceber es­sas necessidades.
Ela é, como todo o encontro ou toda a inteli­gência, igual
O equivalente ao medo, por sua vez, no nível emocional, é a desconfiança.
Construída de todos os resíduos de faltas de apoios, decepções e frustrações, colecionados pela vida afora, a descon­fiança é própria à oferenda.
Todas as vezes que o seio materno não veio a tempo ou a contento acabou gerando algo pior do que a própria falta.
Trata-se da suspeita.
A matéria-prima dessa desconfiança é a incapacidade de separar o que sabemos do que não sabemos. O desconhecido é um profundo abismo e, se fi­carmos olhando para ele em demasia, iremos desenvolver verti­gens que nos desestabilizam, mesmo quando estamos com os dois pés bem plantados ao chão.
Como a história do iogue que plantava bananeira junto a um abismo.
Quando perguntado como tinha coragem para fazê-lo, este respondeu que simplesmente se imaginava fazendo isso em seu próprio quarto.
Não existe diferença entre “abismo” e “nosso quarto” quan­do há confiança, e isso é uma realidade.
Talvez quiséssemos ar­gumentar que o quarto não oferece perigo, mas isso significa desviar-se da realidade, favorecendo o que é desconhecido e arriscado em detrimento do conhecido. Poder separar o conhe­cido-seguro do desconhecido-incerto é produzir um chão fir­me sobre o qual é possível plantar-se bananeira, mesmo ao lado de um abismo. No entanto, só o próprio indivíduo pode perce­ber que o firme e seguro é tão (ou mais) real quanto o que é incerto.
Essa opção pelo “meio copo cheio” não depende apenas de memórias passadas, mas também da maneira como lidamos com obstáculos.
É inteligente, ou seja, contém eficiência, poder op­tar pelo “quarto”, em vez do “abismo”. Quem vê “quarto”, em vez de “abismo”, planta bananeira muitas vezes na vida.
Diria o desconfiado: mas basta o abismo se fazer real uma única vez para anular toda a eficiência das bananeiras plantadas.
Este é o medo produzido pelos deuses com letra minúscula.
Mas a inte­ligência dos sensos e as reverências nos fazem entender que o “quarto” tem a ver com agir, em lugar de reagir, viver em vez de sobreviver.
A opção pela confiança, com seus riscos e custos, amplia a vida, a desconfiança estreita. A confiança é uma cora­gem emocional.
Assim como o medo não deveria ser vivido como algo exterior, mas interior, transformando-se em reverência, a desconfiança deveria ser vivida também interiormente como uma fé.
O segredo para conseguir isso está nas oferendas.
Quando experimentamos desconfiança, devemos evitar estar perto de­mais de quem tem confiança ou mesmo de forçar-nos a proxi­midades com abismos.
Lembremo-nos de que não é uma con­quista externa e que tentar dessa forma pode e, muito provavel­mente, irá intensificar a desconfiança.
Cada um a seu tempo deve levar o produto de seu esforço, de suas lentas e graduais capacidades de desfazer-se de suas desconfianças, e ofertá-las.
 
O mesmo acontece com o medo intelectual.
Esse medo se expressa pela confusão ou uma compreensão que contém idola­trias.
Uma parábola hassídica pode ser de utilidade para com­preender esse conceito.
A parábola compara as figuras do filó­sofo e do profeta, que considera como representantes do mun­do intelectual.
 
“Dois homens foram convidados a comparecer ao palácio do rei. O mais sábio dirigiu-se diretamente para o trono real. O menos sagaz, no entanto, ficou tão impressionado com as ri­quezas e belezas do palácio, que esqueceu-se da razão pela qual tinha vindo ao palácio: para falar com o rei.”
 
A confusão é produto desse olhar curioso e perplexo à com­plexidade e aos detalhes da realidade.
Não que seja proibido ou grosseiro reparar na grandeza do que é belo e elaborado, muito pelo contrário.
Este é o próprio instrumento do intelecto, ou seja, permitir-nos conceber a sofisticação que também produz reverência.
O filósofo menor, porém, esquece dos sensos que o conectam com sua verdadeira reverência.
O filósofo maior, o profeta, não vive apenas do aspecto superficial da razão ou dos adereços da realidade. Ele sabe que existem princípios que construíram o palácio e que são muito mais fabulosos e esclarecedores do que a análise externa.
Correr para a sala de onde se origina a inteligência que faz palácios é a atitude mais sagaz.
Como havíamos comentado antes, a certeza aplicada à dú­vida produz o que de mais sofisticado nos oferece o intelecto. Mesmo assim, acumula confusões e, por conta delas, serve a falsos deuses.
É a dúvida aplicada à própria dúvida, como tam­bém já havíamos mencionado, que liberta o filósofo e o faz profeta ou um visionário.
 
“Certa vez foi dito ao Rav Pinchas de Korets que, no passado, um sábio, que atendia pelo nome de Spinoza havia afirmado que o ser humano tem a mesma natureza dos animais e que, de forma alguma, está acima dos animais.
O rav sorriu e disse: “Alguém deveria perguntar a este livre-pensador se os animais conseguem produzir em seu meio um pensador como Spinoza.”
 
O que o rav faz na história é produzir dúvida sobre a certeza da dúvida do próprio pensador.
Não devemos deixar de entender a produção intelectual, soberana e independente, como uma inteligência.
Apenas que, para ser realmente profunda e não apenas um labirinto de pensamentos, o filósofo tem de ofertar de tempos em tempos as confusões que se acumulam.
Queimar a confusão no altar não trai a qualidade do pensa­mento, mas o conecta com a razão maior de se estar no palácio.
 
As oferendas de medo, desconfiança e confusão produzem uma coragem descontraída de viver, que conhecemos como alegria.
 
Por: Nilton Bonder

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