quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Um Modelo de Inteligëncia - Do exorcismo ao endorcismo


 
É interessante notar que o modelo bíblico de inteligência es­piritual é atribuído a um personagem inesperado e com uma biografia bastante conflitada.
No modelo, seria de esperar que os candidatos à primazia de serem modelos fossem Abraão, o fundador, ou Moisés, o profeta.
No entanto, é a figu­ra de Jacob que ocupa esse lugar.
Abraão é o idealista, auto realizado, enquanto Moisés é o visionário e o ativista tomado, pelo senso de luta, ambos absorvidos demais por seu papel e por seu momento histórico.
A exterioridade de suas lutas os torna arquétipos e símbolos.
Mas é somente quando essa luta atinge as fronteiras do espaço interno que a inteligência espi­ritual aparece registrada no texto bíblico.
Foi necessário um personagem comum (e sagrado) para personificar esse mode­lo humano.
Jacob é um modelo de conflito.
Sua imaturidade inclui o registro de incerteza quanto ao amor paterno (leia-se Paterno) e a insegurança em relação a si mesmo, projetada sobre o irmão, que ocupa um lugar sonhado de legitimidade. Seu inimigo é claro, seu senso de injustiça é profundo e a expectativa de um desastre é iminente.
Ele é, portanto, mais para uns do que para outros, retrato de todos nós.
É do texto que depreendemos que ele personifica um mo­delo.
Não se trata de uma conjectura deste autor, ou o ato, infelizmente tão comum, de privilegiar fragmentos de texto vi­sando a confirmar teses pessoais.
Jacob recebe o nome de Israel (aquele que vive um enfrentamento com Deus) - título confe­rido como iniciação espiritual.
Trata-se do texto de Gênesis 27:23-32, em meio ao relato do reencontro de Jacob com seu irmão Esaú. Após um exílio de vinte e um anos, Jacob se prepa­ra para enfrentar uma pendência fraterna antiga. Ao trapacear o roubo da primogenitura de seu pai cego, Jacoh foi obrigado a fugir para resguardar-se da ira do irmão. Às vésperas do reen­contro, os seguintes eventos se precipitam:
“E levantou-se naquela noite... e cruzou a passagem do rio Jaboc. E ficou Jacob só, e lutou um homem com ele, até levan­tar-se a aurora. E viu que não podia com ele, e tocou-Lhe na juntura de sua coxa, e desconjuntou-se a juntura da coxa de Jacob em sua luta com ele. E disse: “Envia-me, que vem rom­pendo a autora.” E disse: “Não te deixarei ir, salvo se me abençoa­res.” E disse-lhe: “Qual é teu nome?’ E disse: “Jacob.” E disse:
“Não. Jacob não será mais teu nome, senão Israel, pois lutaste com Deus e com homens e venceste.” E perguntou Jacob, e disse: “Dize-me, rogo, teu nome.” E ele respondeu: ‘Por que é que perguntas meu nome?” E ali o abençoou.
E chamou Jacob o nome do lugar: Peniel (rosto de Deus), “porque vi Deus face a face, e foi salva a minha alma”. E nasceu o sol quando passou Peniel, e manquejava de sua coxa.
 
Esse texto contém não apenas a etimologia da palavra, mas também o contexto de onde surge esta palavra-código que é Israel. Palavra que transcende a denominação de um povo e se torna um signo de pertencimento a uma ordem de iniciados espiritualmente. Seja o povo de Israel, ou a designação cristã de Novo Israel, pertencer a essa categoria representa enquadrar-se na definição: “Aqueles que vivem um enfrentamento com Deus e com homens.”
O cenário é em si o lugar da espiritualidade: o escuro.
A noite instaura possibilidades que a luz ameaça.
Jacob cruza um rio cujo nome tem as mesmas letras de seu nome (Jaboc) reor­ganizadas ou desorganizadas.
Simbólico da personalidade que se torna fluida, de tempos de transformação e mudança. Jacob se atraca com um homem que se revela Deus.
Não apenas este misterioso “outro” tem sua identidade turvada, como parece que o texto deseja propositalmente confundir agressor e agredi­do. Jacob e seu contendor trocam de lugar: primeiro Jacob tem sua coxa desconjuntada, mas, ao final, quem manquejava era “Peniel”.
Sem dúvida trata-se de um artifício literário para fazer de Jacob e seu antagonista uma mesma pessoa, tornando a densi­dade do relato nitidamente onírica e com nuances de pesadelo.
O nome arrancado como bênção modifica a essência de Jacob (literalmente, “aquele que se agarra ao tornozelo do irmão”) e alude ao fato de terem nascidos gêmeos e Jacob vir ao mundo segurando o tornozelo de seu irmão Esaú.
Significa a essência de alguém que nasce “sendo” por conta da relação com o outro. Israel tem um centro que é interno, em vez do centro externo de Jacob.
Sua visão de mundo será marcada por sensos e reve­rências, em vez de comparações, análises e conclusões referen­tes ao mundo exterior.
Jacob compreende o mundo tendo que colocar as coisas para fora.
Ele exorciza, expulsa para fora, para poder compreender e dominar.
Israel, ao contrário, traz pata dentro.
Enfrentar Deus e homens e prevalecer significa integrar ou tornar inteiro internamente. Israel não mais verá seu irmão como inimigo ou limitador.
Não será um “outro” que terá responsabilidade por causas ou conseqüências.
Um Israel que tem sentimentos em relação ao outro, sentimentos muitas vezes de ódio, mas que só briga consigo mesmo.
Um comentário bíblico (Shem Shmuel) faz uma observação reveladora por meio de um artifício curioso.
As letras hebraicas podem ser conversíveis a números.
Algo semelhante à letra “A” ter valor de” 1”, o “B”, de “2”, e assim por diante.
Este método utilizado por comentaristas recebeu o nome de Guematría ou, mais popularmente, “Numerologia”.
Sua função é, como vere­mos, realizar diante dos olhos e da mente algo semelhante ao que fazem as parábolas.
As pequenas histórias nos levam a vivenciar determinada conclusão ou afirmação.
Seu poder é muito maior do que o de simplesmente apresentar uma afirma­ção por meios lógicos.
Quem ouve uma história a vivencia.
Quem lida com estes números também penetra em um mundo mágico de códigos intencionais ou involuntários que realçam e revelam certos aspectos.
O comentário em questão analisa o valor numérico das pa­lavras Jacob e Israel, que representam uma mudança não só de nome, mas de essência de Jacob.
O que aconteceu numerica­mente entre Jacob e Israel?
Jacob tinha na soma de suas letras o valor numérico de 182.
Israel, por sua vez, tem valor de 541.
A diferença entre Israel e Jacob representa um acréscimo de 359, justamente o valor numérico da palavra Satan (impedimento, bloqueio ou, em sentido mítico, demônio).
Nessa proposta de inteligência espiritual, a idéia principal não seria expurgar sentimentos ou impulsos mas, ao contrário, integrá-los.
Quando Jacob briga com seus demônios e os traz para uma luta interna, sem ter que demonizar seu irmão, qual­quer um ou qualquer situação; quando assume responsabilidade integral sobre a realidade à sua volta, não culpando nin­guém; quando dá atenção a seus sensos e reverências acima de seus medos e inseguranças; então, seu nome é Israel.
A capacidade de conviver com contradições e paradoxos é interna.
O mundo externo é sempre visto por nós como um mundo de eficiência em aferições, decisões e comparações.
Um mundo que tem que ser de “luz”, não suportando o mistério do escuro.
Mas conhecemos, na experiência interna, a contradição o tempo todo.
Amor que contém ódios, o imperfeito que con­tém perfeição e o fim que não é final são algumas possibilidades do mundo interno inexistentes a nossa percepção no mundo externo.
 
A espiritualidade não se nutre de exorcismos como muitas tradições religiosas propõem. Talvez, este seja o aspecto não­ inteligente que todas ou a grande maioria das tradições religio­sas acabam desenvolvendo.
A dificuldade de conviver com som­bras, a necessidade de teologias que expurguem a escuridão intolerável e outros sintomas de controle e “luz” determinam a distância dessas doutrinas de aspectos inteligentes da espiri­tualidade.
Os rituais de exorcismo deveriam ser exercícios opostos, não de vômito, mas de digestão de nossos aspectos mais rejeitados.
Fica fácil, no entanto, apontar que um indivíduo incorporando seu Satan se transforme no próprio demônio.
O ser espiritua­lizado é, por definição, alguém que trafega pelo “vale de som­bra-morte, mas não estremece diante do mal”. Ë, portanto, um ser à vontade na escuridão e que desconfia da “claridade” como um truque para igualar o paradoxal ao erro e à incoerência.
Assim sendo, exorciza tanto as tradições do controle e da mani­pulação as espiritualidades não-inteligentes como tam­bém exorciza os que se pautam exclusivamente pela razão.
 
Por: Nilton Bonder

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