terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Senso de Saída - Em busca do mesmo que é diferente


 
A inteligência de fazer uso da escuridão depende da capacidade de discernir nela seu potencial redentor.
O galo representaria não apenas o momento em que a noite começa a ser derrotada. Sua inteligência simboliza compreender que é próprio da natureza da noite desembocar no dia, que são um mesmo fenômeno.
Seu grito ao mundo de que a manhã se apro­xima é a revelação de que a escuridão não é em si a rival da vida. Nela está contida uma compreensão do dia, que a própria clari­dade da manhã não consegue produzir.
A saída da floresta não está em buscar refúgio em um lugar que está fora, desconectado desse lugar que nos assusta.
A dife­rença entre o conceito de fugir e o conceito de integrar é o que simboliza o cego da história anterior.
Sua mensagem de tranquilidade provém de seu convívio com a escuridão.
Ele sabe que basta integrar o que vê com aquilo que não vê e ter-se-á encon­trado a saída misteriosa que permite estar-se de forma diferente em um mesmo lugar.
Por isso, há gente desesperada, perdida, no mesmo lugar em que há gente serena imersa em contentamento.
Como se pode estar tão diferente em um mesmo lugar?
Uma consagrada história sufi conta sobre um homem que estava agachado no chão, procurando algo. Um amigo se apro­ximou e, vendo aquela situação, perguntou:
“Por acaso você perdeu algo?”
“Sim.... perdi uma chave e não consigo encontrá-la.”
O amigo de imediato se pôs a ajudar na procura. Após vas­culhar e tatear uma região considerável à sua volta, o amigo perguntou frustrado:
“Tem certeza de que você perdeu a chave aqui neste local?”
“Aqui? Não... não foi aqui que eu perdi, não.... Eu a perdi... lá!” disse ele apontando para um lugar mais distante.
Indignado, o amigo reclamou:
“Mas você está maluco? Se você perdeu lá... por que esta procurando aqui?”
“Ah... é porque aqui está claro e dá para procurar. Lá está muito escuro!”
 
Esse é um relato bem rotineiro de nossas vidas.
Não são poucas as vezes que nos vemos procurando “cha­ves” em lugares que são claros.
Mas essas chaves não estão Lá.
Por mais que venhamos a procurar, elas não serão encontradas.
Elas jazem impossíveis nos lugares escuros, que jamais nos atre­veremos a rastrear.
Ficamos inconformados com a crueldade da vida ao expe­rimentarmos buscas sinceras e perseverantes que não levam a nada.
Cobramos dos céus as chaves que não se fazem disponí­veis nos momentos certos e duvidamos da ordem. Muitos, na verdade, confundem a fé, a esperança e o otimismo com a capacidade de procurar com mais afinco. Pensam: se não en­contramos e porque não nos esforçamos suficientemente.
Mas isso é apenas um recurso para evitar os lugares escuros cheios de chaves.
A inteligência espiritual é aquela que nos arranca do lugar onde há luz e, com toda a dificuldade inerente a esse ato, nos conduz à escuridão.
O galo tem essa função de nos ensinar, de indicar em nossas experiências de vida, de madrugada, que existe uma escuridão que é redentora.
O Rei David, com sua sagrada insônia que não lhe permitia perder esses momentos mágicos de enxergar na escuridão a mais pura das claridades, é outro modelo estabelecido nos Salmos.
Estes tentam transmitir algo que não podem expor sob a forma de manual ou de instruções. Buscam, sim, permitir-nos a incontestável experiência de en­contrar “chaves” onde não gostaríamos de procurar.
São essas experiências que revertem em inteligência espiritual.
Sempre que presenciamos alguém tentando explicar situa­ções difíceis da vida pelo caminho da claridade, devemos des­confiar de que procura “chaves” onde elas não estão. Por isso, as religiões, ou mesmo a espiritualidade, podem se tornar presas tão fáceis das buscas infrutíferas por onde há luz.
O excesso de “teologias”, de explicações que servem como holofotes 24 horas para “garantir luz” às nossas buscas, é uma das mais perversas armadilhas.
São formas de viver a religião e a espiritualidade que emburrecem espiritualmente. Representam formas sofisti­cadas de alienação, chegando a ponto de se institucionalizar com o único fim de “exorcizar” a escuridão.
Diabo para um lado e Deus para o outro, e se instauram as buscas apenas por onde há luz.
Mas essa proposta de uma vida que é livre de me­dos, uma vida em que nunca se terá de ir ao escuro buscar cha­ves, é em si o terror ou o verdadeiro demônio.
Com o passar do tempo, as trevas ganham força.
Os lugares “claros” vão se reduzindo a ilhas cada vez mais ameaçadas pela escuridão. Pânico e fobia espiritual se instalam e há cada vez menos saída.
Afogados por chaves que jamais descobrirão, es­tão presos até que façam o movimento correto de trazer a escu­ridão de volta às suas vidas.
Como diz a máxima: Religião  é para quem tem medo do inferno, espiritualidade verdadeira é para quem já esteve lá.
Cada experiência que se assemelha ao canto do galo, de discernir redenção e mudança em meio à escuridão, nos ensina a investir mais na busca de outras experiências desse mesmo tipo.
A cada experiência em que a saída se dá no mesmo lugar, que é o lugar do aprisionamento, mais refinados nos tornamos espiritualmente.
Quando achamos que a saída é mudar de casamento, de emprego, de cidade, de amigos, de interesses etc., estamos bus­cando outro lugar que seja “claro” para fingirmos para nós mes­mos que ele contém chaves.
Cada vez que esgotamos a capaci­dade de nos iludir que um lugar claro possa conter as chaves de que precisamos, sentimos a necessidade de encontrar tempora­riamente outro refúgio à nossa ilusão.
As chaves dos lugares claros já foram recolhidas há muito tempo.
As que realmente buscamos, as que nos parecem tão difíceis, com certeza, não estão lá.
Enxergar um casamento, um emprego, um amigo ou uma cidade pela escuridão é enxergar aquilo que, mesmo que expe­rimentado em mil casamentos ou empregos pela claridade, não nos fará sair do lugar em que estamos presos. E enxergar pela escuridão significa olhá-los pelo lugar que nos dá medo.
É des­sa escuridão que liberta, mais do que da própria claridade, que se constitui a espiritualidade.
Aprender a buscar os lugares escuros ou até mesmo treinar-­se a querer essa escuridão, é a tarefa árdua e nobre de crescer espiritualmente.
É isso que os ressuscitados que dispunham de meia hora compreenderam.
Vindos das trevas, sem temê-las, a chance da vida os faz buscar a integração do que “enxerga” e do que “não enxerga”. Não querem a “claridade” do apego, mesmo quando este é o carinho de entes queridos. Não querem a “cla­ridade” de esconder de si que são sozinhos, independentes e separados da realidade do outro.
Nesses lugares, que são quaisquer lugares, os mesmos luga­res, há saída.
Basta vê-los de forma diferente; enxergá-los a par­tir do ângulo que nos é obscuro, evitando o vício fatal de acen­der as luzes.
Nas luzes, se dissolvem os monstros, mas com eles também a possibilidade de saídas que farão falta em outros momentos.
Em vez de acender as luzes, a proposta é aproxi­mar-se da escuridão e perceber quando, em meio a ela, a noite se desfaz.
Como David que recepcionava seus monstros com hinos não à luz, mas à luz oculta na noite. Em busca de um mesmo que é diferente.
 
Por: Nilton Bonder

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